Me, Myself and I
Na verdade, o que eu queria era não ter personalidade. Vinham com aqueles olhos molhados de idade, tremendo de sabedoria seguindo os meus e diziam "Ainda és uma criança - murmuravam entre os seus dentes baços - mas depois, quando passares a adolescência e se formar a tua personalidade, os teus gostos, a tua sexualidade... aí serás adulta". E foi assim, pouco a pouco - ano a ano! - que fui criando um invisível mas muito presente medo da personalidade.
Então - pensava eu com a cabeça enterrada na barriga peluda da gata - quando for adulta, saberei o que quero, o que tenho, o que sou. E vou ser (com toda a certeza) a mais querida, a mais amável! Serei voluntária, professora, amiga de todos. Serei isto e aquilo, aquilo e a outra coisa - tudo coisas boas.
Mas a verdade é que á medida que o tempo passava via a minha cabeça (e corpo, e alma) a evoluir em direcções diferentes daquelas que tinha cuidadosamente estruturado. Pior, é que dia após dia via à frente do espelho e reflectida nas minhas acções alguém que não fazia a mínima ideia quem era (eu de certeza que não). Rodeada estava também de pessoas que conseguiam ser exactamente aquilo que eu sonhara. E foi aí que um medo se apoderou de mim. E se realmente eu não controlar a minha personalidade?
Toda a gente sabe que exitem pessoas más. Vamos lá ver, o que são pessoas más. Mentirosas, isso de certeza. Invejosas. Ciumentas. Que fazem birras e fofocam. Que falam mal das outras. Que batem nas outras. Que não pensam nas consequências negativas que as suas acções têm na vida das outras pessoas, que não pensam nos sentimentos das outras pessoas. Depois... pessoas que roubam. Pessoas convencidas, pessoas manipuladoras, violadoras da privacidade dos outros...
O pior é que eu já tinha feito e sentido isso tudo. Já era, por isso, má. E não digam que não era ladra por não ter roubado uma vez. Quem mata uma vez não é homicida? Quem rouba é ladra. Quem mente é Mentiroso. E por aí em diante... Pensei não dar azo à minha tendência dramática e procurar qualidades. Estas sim, fugiam como os pintassilgos quando os tentava apanhar no quintal.
Simpática? (não, talvez tímida de mais). Alegre? (não, talvez mais deprimida). Generosa? (Não... possessiva). Querida? (Odeio que me agarrem)
A verdade acertou-me como uma pedra num telhado de vidro. Era, na realidade, uma pessoa má! Confrontei a minha mãe com a questão. "Claro que não... - disse com as suas sardas a tilintar - és uma menina normal". Então surgiu uma nova qualidade, da qual muito me orgulhava de possuir. A normalidade. Afinal, não era pior que os outros. Afinal, podiam aproximar-se, e até gostar de mim, porque no meu ser, nada de estranho havia! Por uns tempos esqueci a história da personalidade. Evolui como pude, e como consgui. Bati com a cabeça na parede, esbracejei contra as pessoas, escondi-me de baixo das mesas cheias de pastilhas e atrás das moitas. Até que um dia alguém, que já não me lembro quem, se aproximou de mansinho como toda a gente. Falou-me como era rotina, encontramo-nos automaticamente. E um dia, numa conversa disse-me.
Todos os meus medos palpitaram-me nas veias por baixo dos olhos, e atrás das orelhas. O meu coração arrancou-me o peito e os pelos eriçaram-se de frio. Na verdade, foi uma reacção dramática. O alguém assustou-se e explicou-me, entre sorrisos amáveis, que ser estranha até não era mau. Aliás, nem se tratava daquelas qualidades básicas do mau que tinha definido, não, essas eram lógicas. Ne verdade eu era só diferente. Falava de coisas diferentes. Pensava coisas diferentes. Tenho que dizer que especial foi das primeiras palavras que me veio á cabeça. Eu. Es-pe-ci-al! Senti-me convencida e corei. Senti-me feliz. Fui especial por todos os meus poros, porque eu era um indivíduo com personalidade, e uma parte do mundo.
Foi talvez tarde de mais que me apercebi que o diferente não faz parte do mundo. Para que o homem conseguisse viver nele, teve de generalizar as coisas. De normalizar. Tem de haver o reino animal, vegetal e mineral. Os mamíferos. Os peixes. Os vertebrados e invertebrados. Os felinos. Os meninos e as meninas. Tem de haver os góticos, os hippies, os freaks, os betos, os pop-stars, os intelectuais, os nerds e os eteceteras. Foi nisso que me reduzi: num etecetera. Porque na verdade, a normalização não passa de uma redução daquilo em que somos especiais, uma redução com vista a uma mais clara definição de um grupo maior.
A minha personalidade, além de ser má para as pessoas categorizadas como especiais, por ser demasiado normal, era má para as pessoas normais por ser demasiado... anormal. Era estranha. Era esquesita. Não era nem boa nem má. Uma massa não identificada. E aí veio o medo pai de todos:
E se quando a minha personalidade estiver totalmente desenvolvida e (quase ou dificilmente) imutável, for horrível? Se não me enquadrar em lado nenhum?
E se em cada festa que for um rapaz se aproximar de mim e disser "bem me parecia"
E se em cada conversa de domingo me disserem "Não és como eles"
E se em cada noite aconchegada nos braços da minha mãe ela revirar os olhos, suspirando e dizendo "Mas porque é que tens de ver as coisas assim?"
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