sábado, agosto 26

Carta aberta

Sábado, 26 de Agosto de 2006
Exmo. Dr. Tu:
Venho por este meio informá-lo de certos aspectos da sua personalidade, e vida em geral, que parecem ser-lhe desconhecidos. Deste modo pretendo clarificá-lo acerca de pontos de vista que se formularam graças às suas vivências, tão diferentes da minha.
Assim, começo por afirmar (e perdoe o meu vocabulário) mas apesar da sua idade jovem e aspecto contemporâno, a sua mentalidade perdeu-se algures na idade média. Desculpe-me por esta honestidade indigna, mas há quem diga que as pessoas que sofrem do seu mal têm uma mentalidade, e cito "quadrada". Mas claro que me apresso a dizer, que a culpa não é sua. Simplesmente nasceu assim.
Mas novamente tertúlias contra vossa senhoria espalham boatos maldosos sobre si: que insulta sem piedade aqueles que simplesmente nasceram assim; e que logo não poderá encontrar a paz nesta simples proposição. E eu volto a afirmar: a culpa não é sua. Porque o seu maior desejo, como personalidade marcante da juventude actual, sempre foi ser o reflexo da personagem principal de uma série americana. E esse factor, aliado ao seu desejo natural de "normalização" ou originalidade dentro de uma personalidade estandartizada, traz-nos ao pacote que, volto a citar, "Deus quis". Este pacote inclui: Nascimento, Crescimento, Casamento, Reprodução, Envelhecimento, Morte (necessáriamente por esta ordem). Vários argumentos são utilizados para justificar este facto. Mas, seguindo a lei da causa-efeito, todos nos conduzem à proposição da verdade universal: tudo o que acontece deve seguir a lei da natureza.
Pessoalmente, não tenho nada contra essa proposição. Acredito principalmente que todo o ser humano tem direito à vida e ao livre pensamento: logo a aceitação da proposição mencionada depende de cada um, individualmente. Nada apresento contra o desejo irrecusável que o assola desde que o conheço*. No entanto, parece-me indispensável dizer-lhe que nem todas as pessoas querem viver assim a sua vida. Por vezes têm ideias fixas sobre aquilo que querem, ideias únicas, extravagantes, odiosas. Mas se não afectam ninguém sem ser a eles próprios, como podemos julgá-los? Todas as pessoas têm direito a serem o que sentem por dentro. Incluindo você. E há ainda aquele grupo de pessoas, no qual a minha pessoa se inclui, que não têm ideias fixas formuladas sobre muita coisa na sua vida. Têm ideias mutáveis e extranhamente fugidias sobre o que querem para a sua vida. Mas Também não há julgamento possível.
Venho assim implorar-lhe que, pela nossa amizade já quase inexistente, me aceite como eu sou. Porque eu o aceito como é, e dentro dos parâmetros da sua personalidade, respeito-o e admiro-o pelas inúmeras qualidades que possui. Peço-lhe que procure terminar com o dito "revirar de olhos" quando pronuncio algo menos-comum. Sugiro-lhe que não corte conversas quando acha que o que eu digo é puramente loucura, ou invenção. Já nem lhe digo que lime as arestas do seu cérebro, porque entendo que sempre pensou de forma recta. Mas por favor, seja meu amigo, seja amigo do mundo e não exclua todos aqueles que não encaixam na sua definição de naturalidade e normalidade.
Se tal não lhe é possível, como desconfio, devo dizer-lhe que sofro pela nossa amizade que podia florescer e da qual podiamos usufruir os dois para aprendermos mais sobre a vida. Mas já me esforçei de mais, e começo eu também a criar um contrariado preconceito para com pessoas como você, que ignoram as frases e saltam parágrafos do mundo. Ou seja, que saltam pessoas como quem seleciona alimentos.
O meu último pedido é que deixe de pensar em mim, de falar comigo, de abrir a bouca se for para de novo exclamar uma interjeição de aborrecimento com a minha forma de pensar. Espero que se contente em saber que o amei muito, por umas breves conversas que talvez, eu tenha imaginado.
Agradecida pela atenção dispendida
Eu.
*(de encontrar a sua alma gémea, com um relatório máximo de duas relações ao longo da vida, casar numa igreja de véu grinalda e fato, fazer uma festa com um bolo de dois andares, viver numa vivenda, possuir um cão chamado rex ou bobi, ter dois infantes de preferência um menino e uma menina que desde cedo mostrem interesse pelas ciências mas mantenham um estilo e um carácter magnético, sustentar a família com um emprego adorável e uma esposa mulher-a-dias até ao final dos dias, depois de umas quantas viagens de férias à volta do mundo e em casas de praia. )


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