segunda-feira, maio 9

20

1. Só queria um milagre. E na sua mente, que meticulosamente encaixava o puzzle das suas ardilosas mentiras, tudo se compunha: o mundo girava no sentido inverso. 2. As pessoas entendiam-na e sabiam o significado mais complexo que tinham, para si, todas as palavras; 3. e mesmo assim esperavam que falasse, atenciosamente, numa conversa pacífica e ao mesmo tempo cativante. 4. Em casa, o pai havia deixado de lado as suas desilusões para a compreender de olhos rasgados, uma visão completamente inovadora de si e dos outros. 5. E pela primeira vez ela sentia-se respeitada e sabia que, ao certo, ele acreditava nela e nos seus sonhos. 6. Sim, porque tinha-se dado a liberdade de sonhar, e a cada vai e vem novos sonhos emergiam e brotavam do seu cérebro como uma massa sólida, fonte inesgotável de ideias e ideais que se transformavam, na frente dos seus olhos, em realidades. 7.Conseguia escutar agora os corações que se aproximavam do ritmo do dela, e ouvir a melodia da vida em sintonia à sua volta – uma melodia maníaca e obsessiva de serenidade e paixão, numa convergência de opostos perfeitos. 8. Sobrepondo-se a esta musicalidade estavam os seus sentimentos, que agora sentia como verdadeiramente seus, originais, e que conseguia perceber, traduzindo-os para palavras simples e cruéis. 9. Tinha uma força de existir naquele mundo que superava todas as forças do universo. 10. Tinha amigos que corriam para ela ao ver as suas lágrimas queimarem-lhe o ar do corpo, e guardava nos punhos cerrados a água e o fogo que se seduziam sem pressas. 11. Quando mirava o seu reflexo, mirava-se a si, bela, fielmente reduzida à forma mais concreta da sua alma – 12. E via-se sim, só a ela, sem paixões passadas e amores presentes, sem memórias vagas de tempos que ainda não haviam vindo. 13. E sem aquela dor de depressão imanente que antes lhe abria o peito. 14. Os seus desejos mais secretos que a feriam à tanto tempo cumpriam-se numa dúzia de passos, e as suas ambições tão ligeiras multiplicavam-se. 15. Encarava os problemas, não de uma maneira explosiva mas serenamente e praticamente a nulidade. 16. Ela sabia o que era melhor para si, e as suas decisões conduziam-na aos seus objectivos, não se deixando influenciar por opiniões exclusivas e desconhecedoras da sua verdade intima. 17. Sabia que fazia bem a alguém, que era o máximo que podia ser e dava o máximo que podia dar, alguém que compreendia e o mostrava nas suas opiniões e atitudes essa compreensão. 18. Amava a sua alma gémea mas e era amada, mas nem tudo era perfeito. 19. No entanto, a imperfeição que reinava entre os dois era em si a continuação ideal da felicidade.
O seu mundo era um mundo de misérias, de exclusões, de lágrimas e incompreensões. Era um mundo onde ninguém a via, ninguém lhe tocava, e poucos a ouviam. Era um mundo que por cada volta lhe matava um pouco nas esperanças que tinha de se tornar melhor, um mundo onde cada primavera representava mais solidão, mais dor, e a visão de um mundo emocional e físico que não aceitava. O último comprimido deslizou para debaixo da língua. Com um gole seco, fugia à realidade. Um gole de saudade, de desejo, um gole de esperança... um deserto de esperança.
Finalmente, o silêncio.

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