Não és
Foi a noite que entrou pela minha janela e me contou que vinhas. Ouvia os teus passos, já longe, cansada, pela calçada vazia de pedra suja. Escutei com atenção o teu riso estridente a ecoar no mármore das casas, a tua pele de mármore a roçar pelas paredes, os saltos a bater nos degraus, corpo duro jogado no colchão. Dormias como quem está morta. Falecias no teu sono mal merecido, e acordavas de manhã cansada da noite e pronta para te fartares do dia. O teu dia era monótono enfadado em cores de ressaca e dores de rotina.
Quando caminhas pela rua, nem olham para ti; nem querias que olhassem. Mas a sua indiferença é ferida, é odiosa. Ninguém queria que existisses, no entanto estás lá. Ninguém quer dizer que te usa, mas todos te usam, mesmo em metáforas idiotas escritas em paredes públicas. Todos sabem quem és. Todos sabem que existes. No entanto, ninguém te vê.
A noite aproxima-se e já estás pronta. Depois dos comprimidos para dormir, comprimidos para acordar. A tua saia justa sobe-te pelas pernas acima, as ligas, as botas, o perfume. Pintas a cara das cores mais vivas, escondes-te atrás da sombra rosa-choque, dos lábios encarnados, das bochechas avermelhadas. A peruca loira completa a tua verocidade louca. Estás pronta. Os teus passos certos descem as escadas saudosos do tempo em que corrias por elas. Já não és quem eras e nem se quer és quem és. Mas também quem o é?
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