sexta-feira, março 3

O beijo ou nunca mais

O seu mundo era como uma caixinha de madeira, daquelas trabalhadas e ferrugentas onde as princesas guardavam as suas jóias mais preciosas. Dentro dela, pérolas brancas embaciadas brilhavam, e correntes prateadas descansavam no veludo do fundo. Poucos diamantes jaziam nos algodões perfumados. O seu mundo era como aquela caixa. E a donzela abria-a, delicadamente, todas as noites – frente ao espelho. Desembaraçava os seus cabelos ruivos que se desfaziam em pequenas madeixas encaracoladas e deslizavam pelas suas costas nuas. Por todo o quarto se espalhava a fragrância adocicada da sua pele, arrepiada pelo calor das chamas. Rodava a chave na fechadura de metal e mirava as suas jóias, acariciando-as nas suas palmas brancas.
Cada jóia tinha uma textura diferente, e quando lhes tocava conseguia sentir as suas fachadas suaves, as suas imperfeições rugosas. Beijava-as e as pedras gelavam os seus lábios húmidos. Cada uma delas tinha sido o presente de alguém (há muito que não tinha o suficiente para comprar absolutamente nada). O toque das jóias valia mais do que o seu valor material, eram as lembranças generosas que conquistavam o seu coração e comoviam as lágrimas. Ela não estava triste, nem sequer sabia com certeza se tinha saudades de todos aqueles amores. Mas quando lhes tocava, voltavam a si aquelas paixões dominadas e ela não podia fazer mais que re-vivêlas, de olhos fechados, frente aquele espelho ennegrecido. O contacto era com o passado, e nada mais. Nunca ousava imaginar o presente, nem tentar sabê-lo. Corria todas as jóias com a surpresa do primeiro olhar. E fugia depois, para a praia. Sozinha, com os pés enterrados na areia molhada, caminhava para o mar. Não importava o frio que se fazia sentir naquela noite nublada de Inverno. Tinha pena que no céu não se avistasse uma estrela sequer, mas o som das ondas a rebentar na costa apaziguava-a; as gotas salgadas colavam-se ao seu corpo e ela sentia-se por fim feliz, calma – e tudo fazia sentido.
Quando começou a chover, ela dançou nas nuvens e as lágrimas do céu pintaram-lhe os cabelos. De braços abertos abraçou o ar até que, vindo do fundo da praia, ouviu rir baixinho. Eram gargalhadas felizes, brincadeiras tontas que violavam os seus ouvidos. Do fundo do escuro, não via nada. Escondeu-se atrás do muro caiado do quintal, e pensou que estava louca. Mas quando os viu compreendeu o seu gesto certo. Caminhavam lado a lado, balançando ao som dos sorrisos, e as suas mãos – quando se tocavam ocasionalmente – produziam uma electricidade que lhes dourava os olhos. Ela balançava a saia encharcada e serpenteava com os pés nas ondas mais fraquinhas. A chuva também não o incomodava, ele entreabria os lábios para saborear cada gota. Conversavam animadamente, até que num bailado mal calculado a rapariga escorregou nos grãos das conchas e caiu no chão. O homem agachou-se rapidamente com uma preocupação alegre, e estendeu-lhe a mão. Atrás daquele muro, conseguiu tactear a mão dele, embarcar a excitação da rapariga no seu peito. E ela, nervosa, ajeitou o seu curto cabelo castanho, que esvoaçava na brisa. Aproximaram-se devagarinho, como se um magnetismo os aproximasse melodiosamente. E durante alguns segundos, os seus olhos fundiram-se, na ansiedade os momentos surgiram vagarosos, as pernas tremeram: as suas mãos uniram-se e os lábios secos, sedentos de carícias, tocaram-se violentamente. Escondida, já nem sabia se a água que turvava as pestanas era chuva ou lágrimas tolas. Quando se enrolaram na areia e tinha a certeza que já não a veriam, entrou no quarto e sentou-se, pingando, frente à caixinha preciosa.
Abriu-a e retirando a corrente de prata, cortou-a junto a cada pedrinha verde e jogou-as pela janela, para que o vento agora forte as levasse para longe. Mas a verdade é que, quando descansou a cabeça na almofada de seda creme, a face voltou aos seus olhos. Nas horas da noite, as suas insónias sonharam com aquela sua perdida paixão. E quando os primeiros raios de sol substituíram os trovões brancos, ela sabia que nada seria o mesmo. Porque os seus olhos verdes tinham voltado, quando jurara para sempre. Para nunca mais.


Quando o sol já ia alto sentou-se nos lençóis cor de vinho e esperou. Pouco tempo depois entrou, como todos os dias, o velho mordomo com uma bandeja recheada de frutas. Apesar da fadiga, uma vivacidade treinada pintou-lhe as maçãs do rosto e até o paciente homem sair, brincou com as rendas da camisa e deliciou-se com o fresco sumo de laranja. Penteou o seu cabelo numa comprida trança e prendeu-o com uma libelinha de esmeralda azul. O vestido florido de cetim caiu sobre o seu corpo esguio. Era de uma transparência subtil, deixando antever a linhas do soutien vermelho. Calçou as sabrinas brancas e caminhou pesadamente pelo chão de mármore do corredor, até à sala. O sol entrava na janela como se já fosse verão. Mas as pequenas nuvens que se amontoavam na costa previam já a chuva intensa que cairia de tarde. Nem queria pensar nisso: há dois meses que odiava a chuva, a areia, as lembranças mais dolorosas que lhe mordiam a garganta. A vida passava lentamente num instante enquanto fumava um ou outro cigarro. À uma em ponto, Mário chegou para jantar. Era um homem imponente mas os seus pequenos olhos eram doces como mel. Beijou-a amorosamente e deu-lhe as mãos.