Com um pé aqui e outro noutro lado qualquer
À minha frente o espelho que me deste no dia em que nasci. Não me lembro da noite, do frio que senti cá fora enquanto me embrulhavas em beijos. Lembro-me das tuas mãos cheias de calos, da nudez da minha pele contrastando com o teu amor complexo. Sim, já aí, sabia que o amor era complexo. O teu pelo menos. Porque se por vezes era quente e peludo como um peluche de penas, outras vezes era um frio azul translúcido nos teus olhos castanhos (os teus olhos castanhos sempre tiveram essa forma maravilhosa de se tornarem impermeáveis às minhas palavras). Chorava, e ainda nem tinhas aprendido porquê. Simplesmente abraçavas-me, com esse amor infinitamente grandioso que suporta tudo e é mais cego que todos. Tudo ia ficar bem.
Mas como o teu amor, todas as tuas palavras são complexas. Não são simples, nem curtas, e o seu significado nunca se fica por aquilo que encerram. As tuas palavras são como cortes na superfície que se estendem até ao outro lado da esfera. E quando pensava que já tinha percebido o seu significado, mais um sombreado surgia numa direcção qualquer. Ano após ano, enquando me providenciavas todas as ferramentas e conhecimentos alcançava mais um pouco das frases compostas. Mas na verdade, como posso falar de mais um pouco quando o fim não existe? Quando é infinito?
Não me lembro quando olhei pela primeira vez para esta tua incrível prenda, o espelho. Posso olhar para ele e ver tudo aquilo que era suposto ver se os meus olhos parassem quietos e fitassem, conscientemente, o pouco de realidade que nos engole. Mas não: eu nunca tive tempo para isso. Dentro de mim, o tempo dividia-se em fragmentos de perguntas sobre tudo, e a realidade sempre me pareceu limitada de mais (talvez eu fosse limitada de mais para a analizar). Aprendi a imaginar com o espelho. Porque no espelho, sou eu, mas não sou eu: e posso ser quem eu quiser, assim como o resto do mundo. Foi o espelho que me deste, com partículas a contraírem-se e variações de temperatura, que me ensinou a imaginar.
Mas tu não vives só do sonho, como eu vivia. Tu vives dos átomos, das faíscas, dos químicos e das composições. Dos odiosos números. Contas. E eu sempre soube que os olhos daquela pessoa do outro lado do espelho não eram exactamente da mesma cor dos meus, e tinham um brilho diferente. Todas as cores do reflexo eram diferentes, todas as linhas, formas, luzes. Era como um quadro a guache. Morria quando cá fora, no "mundo real", a escuridão vencia.
Nem sei quantas vezes chorei porque não me adaptava ao chão. Ás vozes, ás conversas. Do outro lado do espelho, não há som: só olhares e amor. Aqui? Não há valor mais alto que o da sobrevivencia. Não mates para não ser morto. Não enganes para não ser enganado. A tua obrigação: viver. Nasce, respira, alimenta-te, cresce, reproduz-te e morre. Mais que uma missão: o inevitável. Indispensável: dinheiro, posição, educação, padrão, generalização, socialização. Abolição. Não importa que por trás do teu cabelo murchem ideias de loucura! cala-as e diz-lhes, com carinho, para que se escondam para o seu próprio bem. Que saiam a conta-gotas nos gestos do teu dia. Não há tempo para sonhos.. A sobrevivência não se faz de sonhos, faz-se de esforço! Não importa que não gostes, esforça-te para sobreviver! Viver, viver, viver... para quê? Não entendo, só para estar vivo?
Sim, tu tens milhares de sensações maravilhosas. Tens dores e alegrias tão profundas!.... Mas como posso eu vivê-las totalmente, experimentá-las, se dentro de mim algo me diz que sou só os restos mortais daquilo que podia ser? Se me sinto inadequada em todos os espaços, e olhares rasteiros e dúvidas baixinhas... Não quero dar importância demais às outras pessoas. Realmente não interessa que não me adeque a elas: num dia mais claro, podia até dizer que são elas que não se adequam a mim, e descansar. Às vezes também deit-me numa cama impecávelmente limpa, e a minha cabeça descansa, por umas horas, numa almofada cor-de-rosa com corações brancos. Mas não o tempo todo. E quando acordo...tenho este espelho. Falta algo no outro lado. Raios! falta algo neste lado. Falta algo em mim, ou nos outros? Espero de mais de tudo? Se calhar tenho expectativas demasiado altas. A minha imaginação não me deixa desiludir-me menos. E eu só queria sentir-me dentro deste mundo... compreendida. Será isso que queremos todos?
E continuo a olhar para o espelho que me ofereceste. Para a vida que me ofereceste. Não entendo. Não quero continuar até não entender.
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