sábado, julho 22

Ultrapassei o parágrafo com o meu desespero habitual em terminar de ler o artigo antes do meu cérebro o processar. E foi já no fim da linha que me apercebi daquele acidente de percurso, (no meu percurso) colocado por ali acidentalmente (ou propositadamente) por um autor que nem cheguei a ver o nome. E ele dizia, e não cito; recito, plagio, roubo a expressão com uma indignação genuína: “tirania de sentimentos”. Dizia ele, criticando ferozmente este “estado adolescente”, passível e próprio a algumas dores do romantismo. “Tirania dos Sentimentos” chamava-lhe, sem qualquer tacto ou consideração por adolescentes analfabetas, como eu, na correcta racionalização das coisas.

Pois é – eu – por mais ou menos meandros de dramatismo pelos quais tenha caminhado, e por mais vezes que esta familiar expressão tenha corroído os canais enrugados do meu organismo, jamais tinha nomeado tão abruptamente o estado tão conhecido por… tirania. E talvez o mal esteja na televisão; na democracia, no Bush, nos livros de teorias lidos à pressa de mais. Mas a tirania, surgida de umas páginas quais queres de livros de história do ensino básico, sempre tinha sido o oposto dos sentimentos, aqueles heróicos, gloriosos, corajosos como os de Viriato, o primeiro herói Português (ou roubado à Espanha, tanto dá, já que eles roubam mercados, roubamos-lhe as conquistas). Bom de qualquer maneira vi-me desde sempre a ver os tiranos, a tirania, num estreito nó de laços viscosos com as organizações, os detalhes, a racionalização. Porque para mim, o mal tornou-se banal e uma parte da bondade das pessoas, como se uma outra face dos desejos honestos que os miseráveis exprimem por palavras erradas. Então uma coisa seria o mau, simples e traço comum de todos os frutos do pecado, e outro, este adjectivo sobreposto e poderoso como um sol qualquer: a tirania. A tirania da racionalização.
Como me queixava, e me queixo silenciosa ao lado direito do meu cérebro, desta idiota tendência para os escrúpulos. Não me entendam mal, não é que não goste de ter consciência. Mas na realidade, por vezes penso, se não seria mais fácil em vez de racionalizar e diminuir tudo a categorias cépticas, a relações normais e anormais, a aspectos normais e marginais, a sentimentos normais e psicóticos – simplesmente deixar-me levar pela tempestade dos sentimentos, sem esta cápsula falsa que me protege do sentir de mais e me envenena o sangue de uma monotonia e alienação quase naturais. Ás vezes, em segredo, julgo-me superior e afirmo-me acima desta racionalização estúpida, fiel aos sentimentos; mas depois não penso mas resigno-me como todos ao que não é dito mas subentendido: se o ser humano tivesse sido feito para voar, teria nascido com asas. No entanto, o ser humano nasceu para respirar, para se alimentar, se reproduzir, viver em harmonia com os outros e conjugar o seu individualismo egoísta com a tendência natural para a piedade. Mas como sobrevivem os sentimentos, e como predominam, quando o que nos governa não são directamente os ideais, mas eles são como que um carácter semitransparente que nos acompanha enquanto procuramos um maior conforto, mais possibilidades, melhor vida. Até podemos perseguir os nossos ideais. Mas aquele que voa demasiado alto e cai, como a gravidade grita, é esmurraçado pelas palavras pouco hábeis de tantos, e compreendido por tão poucos, que temo que poucos trilhos lhe sobrem à decisão. Há ainda aquelas ideias que assolam a mente e que sussurram qualquer coisa como uma cantiga de embalar antiga, que remete à inocência infantil e ao desconhecimento de todas aquelas coisas que vão doendo no espírito e rasgando desilusões nas faces. Como seria bom, como seria lindo, não pensar.

Já à descrita tirania dos sentimentos, ergo-lhe um altar de flores selvagens capturadas numa expedição que fiz, á tempos, à Índia. E beijo o ar por onde passam os vultos, e esfaqueio a luz que me derrete os olhos em lágrimas, e incho de raiva, e dor, e amor, e paixão. Não sei se sofro mais que sorrio. Mas sinto-me intimamente feliz por conseguir escapulir, dentro de mim, a um reinado livre de tiranias onde os sentimentos governam sem sentido. Pergunto-me porque não exteriorizo tanto como gostaria este governo louco, e penso que talvez seja a isso que tanta gente atribui a estranheza do meu olhar, a essa ruptura cruel entre os mundos que guardo e os que cuspo. Mas este castigo em que aguardam os meus pensamentos não foi auto-processado. Foi uma coisa que veio, com o tempo, dos olhares revirados pelo exagero ou irresponsabilidade, do excesso ou ausência das minhas reacções. Como seria bom se houvesse algures no mundo, sem ser na adolescência honesta, um lugar para a tirania dos sentimentos.



E será que há? ^^#

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