segunda-feira, agosto 28

Desperdício

É um desperdício. Belo, sólido, imaculadamente concebido (ou não) mas um desperdício. De beleza, de talento, de suavidade. Um desperdício de sensações pingadas de contradições. E repleto de detalhes agradáveis ao toque, ao paladar, à alma. Mas que alma? Qual alma?

Quem é que descobre todas, todas, todas as pequenas sensações como um recém-nascido? Quem é que não aprende, não sustém a respiração porque já conhece o aroma?

E assim só por momentos: breves momentos, pedaços de nada arrancados de uma rotina agonizada pacificamente. Ninguém admira para toda a vida o reflexo interior que os olhos dos apaixonados têm. Ou a vibração do amor entre os toques suspeitos e indirectos. Ou o tom de verde diferente dos olhos de uma menina quando sofre. Não, só momentaneamente.

E assim, só para fugir à rotina, escapar a esta mãe que todos abominamos com um silêncio de consenso, com uma relação amor-ódio oculta: paramos em frente ao mar. E dizemos isto, aquilo, as horas que o admirariamos se o mundo previsse um fim. A água refresca-nos o rosto, sopra os nossos cabelos, seca o sal dos nossos gritos. Temos vidas a mais e pressa a mais para chegar a todo o lado, mas tudo é tão difícil... de tocar, de saborear, de estudar calmamente. De sentir.

Quem é que sente a areia a engolir o corpo, onda a onda?
Quem é que pensa no sofrimento do mar, traído pela secura dos grãos, que vai e vem em vagas lentas, e rápidas, fortes rebentações de fúrias agri-doces, conquistando pouco a pouco mais um pouco da afeição do areal?

Porque é que já ninguém guarda na mão a água até que os seus grãos dançarinos se acalmem e ela seja pura?

E o fechar estridente da porta, quem o ouve com atenção?
Qual o olhar que se prende sem gozo quando os músculos serpenteiam ao som de uma música surda?


E porquê que ninguém aproveita todas as sensações, as pequenas suavidades, dores, sentimentos, atrasos, cores! O céu, as nuvens de algodão, os seus desenhos cinzentos? As gotas de água, as pedras da calçada, o perfume das mulheres? O frio do poste, a dor do abandono? Tem tudo de ser meramente momentâneo, o tempo vem e cura, o conhecimento amaina a sensação... A cadeira quente, o céu estrelado rasgado do teto da varanda. Uma noite de risos, um ou dois sorrisos roubados num amor qualquer. O mentol a escorregar por entre as rugosidades da garganta, as pombas no seu voar desajeitado e o seu cérebro pequeno, o cabelo suado, a pele rugosa, as sardas, as alturas, os ramos, as folhas, as tonturas. Um mundo tão completo, e repleto que chamar-lhe obra prima seria um insulto.

Mas que desperdício. Quem passa mais de que meros instantes compridos somados mesmo ao fim de uma vida comprida?

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