quarta-feira, agosto 16

Solidão

nem sério, nem triste (porque essa classificação personalizada não existe para os da sua espécie) mas se tivesse de retratar a posição esculpida no seu corpo, erguido perto do vidro, o nome seria solidão.

Solidão não vive sozinho nem acompanhado - pois a sua vida só o é em definições demasiado limitadas e sumariadas de livros de primária. Solidão acorda, mas permanece quieto. E respira, mas pesadamente como se cada inspiração fosse uma sentença. E ele come, mas o prazer já lhe fugiu à uns tempos. Porque Solidão viu-se, talvez desde sempre assim: abandonado do outro lado de um vidro. Não está bem claro na sua mente irracional (?) quem o abandonou, as suas razões, os seus pontos sem nó. Não inspira sequer dó as pessoas que passam, mas sorrisos de quem o reconhece do outro lado de um espelho de água. Ou de barras de metal.
E as pessoas que passam são, na sua forma expansiva e postura torta, prisioneiras de outras jaulas de vidro e grades. Por isso que fariam mais, na sua ridícula posição de espectadores do seu mesmo destino patético, que rir?
Mas Solidão não se importa com isso. Aliás, com nada. Uma curiosidade transparente impõe-se entre ele e o resto do mundo. E ele permanece ali, instante após instante, de cabeça cabisbaixa mas olhar penetrante, junto ao vidro. De súbito mas pouco a ponco levanta o braço negro e cola ao vidro a mão cinzenta. Como se quisesse tocar o ar que corre sujo fora da prisão que habita. Mas as pessoas riem. Ele não percebe sequer o que é o riso - e não sei se é por estar sozinho ou pela sua naturalidade - mas que importa?
Se recortasse os olhos da fotografia, podia ser qualquer um de nós. Se recortasse as mãos da fotografia, podia ser eu, ou tu. Se te contasse a tua vida, justificarias a sua tristeza. Mas não - ele não sente solidão. É só ele. E eu fiquei só parada, oculta por qualquer coisa, com vergonha de ser eu.

Não é extra-sensibilidade da minha parte.
Não é exagero.
Não é ilógico.
Não é imaginação.

Daqui a um dia ou dois ele será uma lembrança alegre.

Mas por agora, ele é o símbolo de tudo o que nós somos.

Sós. E como nos isolamos a nós uns dos outros, isolamo-lo também a ele.

Não é engraçado ouvir dizer que os animais são iguais a nós, e depois dizer que as pessoas vêm primeiro?

Solidão não sente. Não vive, nem sobrevive: arrasta-se.

Mas alguém me disse: os médicos dizem que ele está deprimido.

Solidão não sente. Solidão não se interessa. Não quer saber. Solidão não entende, não vê, não pensa. Não chora, não ri. No entanto, está deprimido.



Da próxima vez que se derem ao trabalho de gastar tanto dinheiro para o ver, ao menos vejam-no.

2 comentários:

belchi disse...

Já o vi também. Não precisei de pagar.
Era o mesmo, tenho a certeza. Reconheci-o pelo já sabido olhar profundo mas ausente, pela angústia que aperta o coração.
Era sim, o Solidão. Quantos de nós o verão?

Anónimo disse...

já o vi...reparei nos seus olhos vazios, tristeza?...sim a solidão anda a par com o Vazio, já deram por ela?