segunda-feira, outubro 23

Água salgada

Como é do conhecimento geral, nas profundezas do oceano, depois das cavernas escuras onde nunca nenhum ser humano (ou sonda, ou máquina, ou destroços de navios e piratas)consegui chegar; mesmo depois dos peixes brilhantes e das correntes frias, vivem as sereias. E como toda a gente sabe, elas pouco conhecem do mundo acima das suas cabeças, e muito poucas se aventuraram a ultrapassar sequer a escuridão total. O que pouca a gente sabe, por descuido e falta de cultura geral, é que as sereias são seres muito pouco inteligentes. Na verdade, quando são adultas a sua memória resume-se aos dois dias passados, esquecendo por isso toda a sua infância. Mas a história desta noite não é sobre isso. É sobre uma pequena sereia, com um ou dois aninhos (quando ainda se lembrava de tudo, desde a experiência traumatizante do ovo), a quem foi dada o bem mais precioso do mundo. Este bem foi guardado pelo sábio no início dos tempos numa pequena caixinha de conchas brancas, e dele só se conhecia a forma: eram as palavras mais poderosas do mundo. A pequena sereia sabia que devia guardá-las com cuidado e protegê-las das estúpidas irmãs mais velhas, e das insensatas anciãs. E por isso, andava sempre com a pequena preciosidade embrulhada numa das barbatanas das costas, e nunca - NUNCA - deixava que ninguem lhe tocasse. Havia noites em que ficava a mirá-la, as reentrancias dos búzios do cadeado, as manchas das conchas... e depois batia levemente na tampa, e esperava que as palavras lhe respondessem. Mas só se ouvia o silêncio ondulante e pesado do fundo do mar. Num dia que passeava por entre as belas construções de areia brilhante e células luminosas, a pequena sereia começou o ritual da adolescência. As suas escamas brilhantes tornaram-se mais baças, e nasceram-lhe pequenos seios arredondados que cobria subtilmente com os limos mais raros. Os olhos tornaram-se negros, como a sua memória. E pouco a pouco foi-se esquecendo do motivo pelo qual levava a pequena caixa sempre consigo, para todo o lado. E um dia, quando o mar parecia mais leve e não havia ninguém por perto, resolveu abrir a pequena caixa. Esta estava velha e enferrujada mas ofereceu resistencia, tanta que quando a pequena sereia a abriu caíu de costas para trás e nem teve tempo de ver 3 bolhas prateadas que escaparam por entre o espaço vazio. Subiram desenfreadas, livres, loucas, circulando na água salgada. e atropelaram outras sereias que nadavam tranquilamente, arrastando-as a elas com todo o seu peso pelas camadas de escuridão e grutas, até uma água mais clara e transparente. As sereias debateram-se, guincharam, asfixiaram numa luta em vão. Por fim, as pequenas bolhas rebentaram à superfície e gritaram suplícios de tristeza, as palavras mais tristes que alguma vez alguém ouviu. O som penetrou nas sereias como um ardor alastrante, cortou-lhes o ar, abrandou-lhes o peito e criou um coração mais pesado, que batia duramente na pele. As sereias nunca mais se esqueceram de nada. Pelo contrário, lembravam-se de todos os passos que dariam a partir dali, pensaram e repensaram tudo, analizaram, murmuraram as respostas. Só não se lembravam de como tinham chegado aquele estranho lugar, onde as ondas espezinhavam a areia fina. Mas de que importava? Tinham tantas coisas para pensar...
E no fundo das profundezas do mar, a pequena grande sereia já brincava feliz com as outras, esquecida de tudo.

Um dia voltei à procura da minha caixinha mágica. Mas já era também um pó húmido e grosso do fundo do mar.

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