terça-feira, dezembro 26

O mONSTRO

O monstro, outrora agaixado, ergueu o seu corpo verde,e das pequenas borbulhas brancas cairam gotas de saliva ácida que cavaram um poço à sua volta. Os olhos rasgados eram já só palpebras viscosas que se movimentavam como adormecidas, e as narinas abertas produziam um ruidoso fungar enquanto procurava a próxima vítima. Era como um sapo de lava mucosa, que caía pelo precipício negro da antiga estrada de campolide. Vi um esforço para abrir os olhos, e no milésimo de segundo em que estiveram abertos eram como uma lupa para um cérebro febril, atormentado pelos desgostos que todas as pessoas lhe tinham causado. Dos pequenos orifícios smi-cobertos que imaginei serem os ouvidos, ecoaram guinchos de dor e noites sem dormir: as traições da vida, as falhas, a perfeição que sempre escapava à primeira infância. "Ahhh... como a vida foi...shhh" calou-se com um suspiro e tudo mergulhou num instante de silêncio. Quase imaginei aquela criança anormal, o seu esforço abismal para ser compreendido por todos os mini-adultos que brincavam no pátio. As crianças são brutalmente honestas. Não menosprezem a força que as suas palavras afiadas têm num coração inchado. Espetam-nascomo pequenos pioneses e pucham-nos destapando fios de sangue. Essas feridas não saram, mesmo quando envoltas numa camada gelatinosa de químicos e palavras orientadas. O monstro balançou no seu próprio muco, como se o cheiro fétido que dançava à sua volta o deixasse mal-disposto. Milhões de baratas de toda a cidade corriam para ele, atraídas, e escorregavam em rios para o fundo do poço. E ouvi-o gritar, com as paredes da garganta coladas e os lábios soltos "AS PESSOAS SÂO TODAS IGUAIS!"
Então era isso... mas quem pode ser culpado quando todo e cada ser humano o desilude tanto que ele precisa de reduzi-las ao mínimo exemplo prático, catalogá-lo. Só assim as suas vísceras se habituaram à vida, reduzindo-a a um amontoado de caixas de papelão: a expectativas estáticas, impermeáveis, certas. Deixou de sentir, e o que sentia era entre estudos detalhados das reacções. Deixou de amar como os seres humanos deviam amar. Deixou de sofrer como os seres humanos deviam sofrer. (Foi então que me viu, no meu esconderijo anónimo. Da cabeça melosa serpenteou um jacto, não, um tentáculo ondulante na minha direcção, atou-me a cintura e senti os pulsos quebrarem, impotente na minha pena e nojo, balançando da compaixão ao ódio)

Fechei os olhos com força e respirei o fim.
Quando os abri, ali estava ele, a ver televisão, depois da discussão da hora.
"Não precisas inventar ceninhas para pedir desculpa. Eu percebo a intenção, fica melhor dizeres que é diferente não é?"

não.








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