Rotina de escravos do amor
Os beijos eram como migalhas de felicidade. E o amor era o brilho nos seus olhos...
Isso era dantes. O que é verdadeiramente a felicidade se não um deus imaginário que todos adoram, ao qual todos se dobram? Agora, os beijos eram como migalhas de nada. Eram rotina - secos e mortos mesmo quando tudo era perfeito. Quando beijava Mário, era como dormir, acordar, comer: natural. Ás vezes pensava que estava com ele para passar o tempo - como um hobbie, um passatempo (os enredos que a mente arranja para iludir os escravos do amor). Faziam amor com um prazer volúptil, uma fragrancia áspera de guerra à solidão. E quando ele, carinhosamente a abraçava, e sentia o seu corpo nu contra o dela, só sentia nojo, e queria fugir. Afastava-o de olhos fechados fingindo sonhar. E ele agarrava-a, ainda com mais força, como quem se agarra à vida, ao sonho... à felicidade. Por vezes segredava-lhe ao ouvido "Amo-te". Mas ela não dizia nada e simulava-se adormecida. No dia seguinte acordava mais cedo e ia ela mesma preparar-lhe o pequeno almoço, num pedido de desculpas fraternal. Ele comia, sorriam, e partia. E ela passava o dia ameno entre cafés e cigarros compridos.
- Vem comigo - dizia ele - Vem, veremos juntos aquelas cidades magníficas, as pessoas modernas, as estrelas mais brilhantes da terra! Seria um verão fantástico!
Mas no fundo, sabia que ela diria sempre que não. No verão, a sua donzela deixava-se doirar ao sol com o peito enterrado na toalha, sobre a areia quente. Desvendava as suas pernas compridas e esguias, e entrelaçava-as enquanto sorria brevemente aos homens que passavam. Só no verão deixava o seu cabelo ruivo poisar solto sobre os seus ombros, e os seus olhos escuros reflectiam o céu azul-turquesa, o mar azul-escuro, o bikini azul-bebé. De tempos a tempos, levantava-se hábilmente, camnhava - pé-ante-pé- até ao mar e mergulhava sem medos naquela massa pura. Perdia-se a sua figura nas ondas do mar, na espuma da rebentação. Quando emergia das águas sacudindo as madeixas loiras, o sal brilhava-lhe na pele e as gotas de água adivinhavam as formas do seu corpo sedento de paixão. Não havia um homem que evitasse olhar para aquela sereia. E ela passeava à beira-mar, até que algum enchesse o peito e o ego e fosse meter conversa. Os romances da donzela eram sempre vivos, apaixonados, com cartas de amor e juras de eternidade - era a sereia, a musa, a princesa - o mistério da praia das conchas. Um dia, cegos pelo amor que respiravam, os homens ofereciam-lhe uma jóia - alianças, anéis, pulseiras de conchas ou das pedras mais valiosas. E no dia seguinte, com uma carta, o encanto queimava-lhe as pestanas.
Mário regressava das suas viagens sedentárias, todos os anos, dia 17 de Setembro. E ela estava sentada no descapotável branco, com o mesmo vestido de seda rosa e o lenço a prender-lhe os cabelos queimados. O baton era o seu preferido, aquele vermelho com sabor a rosas. E o mundo voltava à sua devida posição.
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