quinta-feira, abril 20

E queria esquecer

Lembrava-se bem dele... a primeira coisa que via eram aquelas mãos duras e rugosas a esfregarem-se lentamente, ásperamente: as pequenas peles a cortarem as palmas das mãos, as cicatrizes no polegar castanho. Não era um homem muito grande - mas o seu olhar escuro com um cinzento de loucura impunha o que lhe faltava em altura. Lembrava-se vagamente do seu sorriso como uma das coisas mais belas da sua infância: não pelos seus dentes amarelados ou lábios gretados, mas pela luminosidade que lhe clareava a alma e (quase, quase!) lhe aquecia o coração. Os cabelos, pequenos caracois negros, tinham com o tempo se tornado numa mistura de arame prateado; ora branco, ora cinzento-escuro.
Sabia que havia algo de errado com ele, desde sempre. Mas não pensava muito nisso, era um segredo subentendido daqueles que dormem na dobra da orelha e na ponta da lingua. Ou no céu da bouca... porque na verdade, o que sabia era tão pouco! E sentia-o injustiçado, pela maneira ríspida como os outros o tratavam (e a tratavam quando estava com ele). Felizmente, depois da morte da mulher, o seu rosto desapareceu dos natais e eventos familiares. Felizmente porque quando aconteceu, quando soube, já era só uma leve lembrança e as mudanças do crescimento sobrepunham-se às máscaras com que a tinha enganado. Ouviu tantas vezes o seu nome a partir daí que foi como se se tivesse dividido em dois: aquele que a abraçava enquanto criança e lhe dava beijos de velho; e aquele ser imprudente, doente, que tinha prejudicado as mentes de todos à sua volta; e que no seu ver tinha feito desabar na sua família um sentimento de inconsistência e destruição inevitável. Era inevitável o espaço entre todos os indivíduos ligados por laços de sangue. (Sangue de quem, à custa de quem?)
Quantos desgostos e dores são precisos... Quantos corpos sucumbiram em sofrimento aquelas mãos que lhe afagavam os cabelos! Quantos segredos guardaram para se poderem chamar de família?

Há muito tempo que não o vê. Mas já sabe, já sabe o que a assustava nos seus olhos abruptos. Não era a cor escura. Não era as rugas no canto do olho! Era a indiferença. A indiferença dele era realmente nula. Mas a raiva que despertava virou-se contra ele.. Queria esquecer. Não a ele, mas as causas da sua vida.

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