segunda-feira, julho 3

Incoerências

Toda a gente disse, e só eu sabia: era só um desperdiçio de bolhas de carne. E a cada voz que se erguia (ou se curvava) aos meus ouvidos, eu acenava que sim, concordava serenamente enquanto mastigava no crânio (um redondo não). E não é que achasse ser algum dom saber, simplesmente sabia. O material, a matéria-prima, é simplesmente fraco, de baixa qualidade -Sim; como numa qualquer construção mecânica mal retocada.

Toda a gente disse, sussurando e rodeando-me com uma malha quente: uma chávena de chá, um beijo na bouca. "Mas é claro que não estás louca. Simplesmente não podes..." Não podia. Ser assim. Ser.

Nem valia a pena pensar nisso porque o pensamento dói mais do que as palavras. E entre mim e o mundo sempre estiveram mais palavras pensadas do que ditas, logo a comunicação... era pouca. Mas o mundo também não se importava. Porque havia os padrões, as regras, as crenças. O tacto. É preciso ter tacto. Com as pessoas, com os animais, os ecologistas, a avó e os religiosos. Tacto. É preciso não dizer tudo o que se pensa quando se pensa - dizia-me ele. É preciso controle. É preciso tacto. Tacto com o mundo, a sociedade.

E é preciso descontrole. É preciso o Dom, a magia, o mistério, o amor. É preciso uma fusão abrupta e irrealmente construída em camadas de células, uma mistura de controle e descontrole, amor e consciência, cor e... vazio. É preciso esvaziar metade de nós e taparmos com uma esponja de pedra-pómus.

Acabou-se, acabou-se tudo : sorri, estás vivo. Vivo, respiras, e a cada movimento do teu peito as veias do teu antebraço latejam sem que tu as vejas e tu sabes que estás vivo. Já encostaram a cabeça ao teu peito e te disseram como o teu coração bate? Não bem do lado esquerdo, mas ligeiramente para lá... do lado errado, então. Não fales, não chores. Nem precisas de rir. Não. Esforça-te, faz tudo o que quiseres e luta por isso, revolta-te! Ah... mas o que queres... não é dinheiro? Espera, espera. O dinheiro? sim, o dinheiro compra a felicidade, a saúde, a roupa, a máquina para a lavares. O tecto, a casa, o passe. Os estudos que um dia quiseres. Dinheiro. Esperteza - porque ninguém chega lá sem ser esperto - a inteligência. Lábia, lábia, lábia - eu não a tinha e vez como estou?

Os homens bons e pobres acabam amargos. E pobres, já te disse? Não é isso que quero para ti. Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Porque sem ele não há vida. Não há emprego, não há casa, nem carro, nem comida, nem roupa lavada. E não queres garantir isso aos teus filhos? Claro que queres. Dinheiro. Só quero que tenhas estabilidade, depois disso, se quiseres, podes ser feliz. No fundo, directa ou indirectamente, eu só quero a tua felicidade.

Escreves bem. Eu também escrevia bem quando era da tua idade. Mas nunca te quis dizer que gostava de ler porque não te queria influenciar. Porque na verdade, a única razão pela qual gostas de escrever, e de ler (já agora) foi aquela professora parva que um dia te disse que eras uma poetisa, e te fez rir quando as notas, e as bolinhas vermelhas no quadro não te davam tanta certeza de seres boa em alguma coisa (sem ser a roubar cromos da barbie e gargantilhas da tua prima). Tens razão, não é por isso. És uma fraca PARA DE TREMER, PARA DE CHORAR ,É ASSIM QUE DISCUTES? És uma fraca. Discute! Porque é que és sempre contra mim. Tudo o que fazes é contra mim. Foste por ali porque queria que fosses por aqui. E gostas de escrever... porque eu nunca quis que escrevesses? Escreves bem, mas isso também eu escrevia.

Porque é que não foste por ali, ou por aqui? Ou porque é que pintaste dessa cor? Pára, eu sei, eu sei, mas tu não v~es que o mundo está todo contra mim? Que todas as pessoas são mesquinhas, egoístas, estúpidas. Tens de ser mesquinha, egoísta, estúpida. Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Luta. Mas já és como eles! Só quero fugir daqui, ir para um lugar onde as pessoas sejam boas. Fugir de ti. Deles. Desta vida, da minha vida. Sim, és parte da minha vida, fora.

Claro que tenho orgulho em ti. Mas agora... porquê? porque és assim? Não podes ser assim. És só contra mim. mas claro que tenho orgulho.

Olha para ela. Não interessa. Não interessa. Não é verdade que tem dinheiro? E daqui a uns anos uma casa, e um carro, e um emprego, um barco e uma roulotte. Não me interessa. Não quero um gay dentro desta casa. Prefiro que seja parvo, mesquinho, estúpido. Prefiro que seja tudo. Expulso-o. Cala-te. Não vês que são más influências?

A culpa é minha. Sim, eu sei que a culpa é minha. Eu gostava de escrever mas... claro que não sou frustrado. Se eu te tivesse ensinado... se eu fosse como o meu pai. No meu tempo. No meu tempo. Compreendo mas... tu nunca tentas ver o meu ponto de vista! E SE GRITO, JÁ ME OUVES? CALA-TE, CALA-TE, CALA-TE!!

Não se pode estar aqui, vou embora. Ai, lá vou eu por água a fervura.

Um dia vou ser o melhor, ter dinheiro. Porque é que não sou melhor?

(Do-contra) o problema é que são os dois muito parecidos. E é preciso alguém que saiba ceder.

Não a v~es a ela?? Ela tem talento! Ela é forte, há de lutar não é como... não claro que não quero que sejas como ela. Tenho muito orgulho em ti. E quando fechar a porta num suspiro seca de viscosidade desejo ao meu santinho que faças o mesmo que ela.

Fecha a porta. Dorme. Está tudo bem. O que tiver de ser, será. A vida passa num instante.

On/Off, como um estímulo num neurónio ou numa máquina cibernética. Todos mais inteligentes do que uma relação de ligar desligar. É preciso uma mistura entre os dois estados. Cedências. É preciso ceder parte de ti para que a outra parte ganhe. É preciso que a parte que ganhe seja aquela que te leve ao sucesso pessoal, individual, social. Mas dorme, que já é tarde.

Eu sempre soube, que não conseguiria viver neste mundo. No entanto, fico relutantemente feliz que exista para vocês, que tanto precisam dele. Talvez eu um dia destes fuja de vez, e me esconda no canto da minha cabeça onde os cães criam as sombras ao uivarem, a noite.

E mais uma vez digo. Eu não preciso de fazer sentido ou de me encaixar nos grandes casulos que prepararam para mim.

Agradecida pela atenção

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