terça-feira, agosto 1

Da minha cripta, te escrevi

Através das estreitas ligaduras de agodão roído conseguia cheirar o pó e a areia que se levantavam em ondas contra o meu corpo rígido. E as pedras estremeciam umas contra as outras, nuas, sem a argamassa que outrora as unia estruturalmente. Gemiam em sons de ardósia que arranhavam os tímpanos. Isso claro, se ainda tivesse tímpanos. Mas sentia as vibrações redundantes de um aparelho qualquer na fibra que me entalava, e na madeira debaixo de mim e até (porque não o dizer) nos restos dos meus cabelos caídos para o lado direito do meu crânio. Acho que foi aí (sim, tenho quase a certeza) que uma dor alastrou-se pelos pulmões secos e estes expandiram-se num murmúrio surdo que ecoou pelo túmulo. As oferendas de ouro ressoaram no chão e o som metálico do bater do meu coração pulsou-me os olhos e electrificou-me o cérebro. Ainda num extâse inexplicável, com o queixo imóvel pelas faixas e pelo espanto, o maxilar estalou e como por magia, as fitas serpentearam pela minha pele e caíram como serpentinas ns tábuas podres. Os meus olhos estavam colados como os de uma boneca de porcelana no primeiro dia de brincadeira. E poucos segundos depois da explosão, vi-te em eclipses de excitação e náuseas a surgir por onde, nos ultimos milénios, tinha estado a tampa seca e dura do meu caixão de pedra. Tentei estender os braços, mas só me lembro dos teus dedos, enterrados nos meus ombros - sugando-me para a vida. Subitamente os meus novos cabelos, húmidos e recém-nascidos, brilharam e entrelaçaram-se nos teus caracóis. Nem pensei que estava viva. Enquanto te glorificavas da minha descoberta, só me apetecia dizer-te "Até que enfim. Estive à tua espera este tempo todo. Só ainda não sabia quem eras." Mas não disse pois não? E tu olhaste para mim e vi os teus olhos boquiabertos, as veias vermelhas a cercarem o seu brilho natural; a tua voz tumular quando afirmaste.... "Está morta."

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