sábado, outubro 7

Estava sozinho, em pé, encostado a parede do último beco. Mas das suas feições pouco se avistava se não a sua breve silhueta cortada pela parede escura, desenhada contra a luz trémula de um dos apartamentos. Conseguem imaginá-lo, assim, sozinho, um vulto entre as caixas de cartão e o fedor dos contentores abertos? Pois bem, era assim que ele permanecia, todos os dias, à minha espera.

Quando me abraçava, sentia aquele perfume adocicado sábiamente espalhado pelo pescoço, e as mãos ásperas que me guardavam do bolor dos tijolos descobertos. E eu já não tinha medo, nem ansiava nada; o meu desejo era ficar ali, entre os seus braços quentes e o seu coração bondoso. Os cheiros ácidos condensavam num círculo à nossa volta, e até a luz parecia mais clara.

Mas um dia, por qualquer razão, o meu olhar fugiu dos seus beijos gelatinosos e escapou-se para um ruído que vinha, lá de fora do beco. E continuou a fugir: noite após noite, pousando nas luzes avermelhadas dos cafés e nos faróis dos carros, deslizando por uma prega da sua roupa até ao contorno da estrada. Já não me queria encostar ao seu peito, queria que os seus braços se estendessem, se alargassem para que pudesse admirar completamente a mistura de cores, e luzes, e até de alguns aromas que me chegavam levemente quando o vento soprava mais. Via as pessoas, não vultos como nós: mas seres coloridos com as suas vestimentas axadrezadas, e listadas, e douradas! E elas movimentavam-se livremente, dançavam pelo passeio, caiam.

Continuei a estriçar as mangas do seu casaco enquanto tentava que o seu abraço abarcasse todos os meus movimentos. E ele continuava, na mesma posição, com a mesma cabeça levemente pousada sobre o meu ombro e a luz a iluminar-lhe os cabelos dourados que pendiam sobre os olhos. As chagas que continuamente se abriam no meu desespero por um espaço eram lhe indiferentes. Protegia-me, do escuro do beco, do fedor dos caixotes, dos sem abrigo bêbados que me chamavam gemendo. Abraçava-me, cobria-me, salvava-me de um mundo que eu já nem sabia se era realmente perigoso.

Foi então que tudo se começou a confundir. Já não distinguia o mal do bem, a luz do escuro, a distância da proximidade. Só sabia, num grito profundo, que precisava de fugir dali. Fugir do bem e do mal, perder-me, como disse o outro, para me encontrar noutro lado qualquer, mesmo que quebrada, mas um pouco mais sábia, um pouco mais vivida: um eu que tivesse sentido mais do que a malha do seu casaco e a suavidade da sua pele.

E por isso, numa das noites, matei-o. Sei que qualquer das minhas ansiedades não justifica o assasínio a sangue frio. Mas esqueci-me se foi deliberado, enquanto distendi os seus membros e os levei além daquilo que podiam esticar; Quando se romperam, pingando a calçada escura de pingas de sangue, o seu rosto contorceu-se de uma dor surpreendida; Os seus olhos encovaram-se e a palidez do seu rosto amarelado cobriu o meu pensamento enquanto corria para a rua movimentada. Mergulhei numa parede de luz que me absorveu as lágrimas, enquanto o seu corpo quebrado em espasmos se fundia na urina seca e restos de lixo, e morria, lentamente, dolorosamente: como se escrevia no jornal uns dias depois. O assassino nunca foi encontrado.

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