quarta-feira, outubro 25

No autocarro

Ela era uma boneca de trapos do tamanho de uma mão cheia de vida.

Ou seja, um bebé.

As faces brancas, o cabelo escuro. Os olhos pequenos e castanhos, as pestanas vagas, as mãos enrugadas. Embrulhada num pequeno cobertor cor-de-rosa, no último canto da última divisão da casa.

E não eram ricos. Mas a boa-educação vem do berço, não do dinheiro - diz ela.

Era uma típica família Portuguesa. No entanto, a boa educação não veio sozinha: trouxe as maçãs pintadas de vinho escuro, e as sobrancelhas arranjadas, a postura hirta e as unhas pintadas.

Mas não no início. Porque ela era uma menina de bem até ao último botão abotoado. O trabalho veio sem a escola, e os diplomas sem as letras. O marido veio primeiro em cartas, de boas famílias e papel perfumado. Casou com o primo prometido, e viviam quase sem os problemas típicos do país. Só uma mão grande demais e algumas costelas partidas. Mas a boa educação leva a vida dessas, explica-me ela com os olhos cortados. E vem do berço.

Os dias cresceram, as dores cresceram, os filhos cresceram. E os sacrifícios, as queixas, os espasmos com as novidades. As saias cresceram para cima, os cabelos num vai-vem, as gravatas e os saltos. Saltaram para fora do ninho, uns mais outros menos felizes, e deixaram-nos novamente sentados: a boneca de trapos amarrada a um tronco que lhe torturava os movimentos, o velho enterrado na poltrona de rádio na mão. Enterraram-no na terra-natal, sabe Deus onde, e ela voltou, só, para a cidade.

Conta com muitos diplomas - repete ela - mas nem sabe contar as letras.
E a viagem de autocarro está no fim... obrigado, obrigado pela atenção menina.



Caminha hirta. E pouca gente vê como vai apressada e aflita.
E nela vejo-me a mim, daqui a quantos anos?
Serão todos assim? Porque como ela disse... a vida passa num istante.

Qual destes instantes será?

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