quarta-feira, novembro 22

O último andar

Num canto nublado da sala, o bolor alastrava (num tom estranho de cinzente e verde) e o cheiro a mofo e a humidade (guardada e sete chaves por tempo de mais) impregnava-nos as roupas. A porta de madeira rasgada, com as lascas à muito desaparecida, deixava transparecer pelas reentrancias o musgo escondido; e no lugar onde costumava estar a maçaneta um buraco pálido surpreendia o olhar menos atento. Mas nada disto importava. Nem as gotas que pingavam das telhas, nem o som dos bichos da madeira ou da chuva torrencial a escavar as paredes. Naquela velha sala verde, só nós importavamos.

(Não me lembro do chão, o que pode parecer estranho visto que estava deitada, no tecto, a olhar para ele). Acho que estava voltada para aquela figura impávida do homem no sofá. Encostado na poltrona vermelho-ferrugem, baça, velha (mas decididamente pouco utilizada) ele permanetcia quieto (como no seu passado eterno) monótono, idiota (mas sem ser patético, porque isso implicaria claro, movimento). Ardia-me a camada debaixo da pele e o meu cabelo ardia sozinho de raiva. E os olhos - os olhos dele, Meu Deus! Eram como os de uma serpente, uma raposa paciente (que espera, contente, pela sua presa). Mas não se enganem, ele não se mexe. E o movimento do seu corpo era o reflexo exacto do movimento do meu, as palavras a resposta concreta, sem surpresas mas creativamente repetitivo. Adormeci, e sonhei que tinha de voar um pouco mais. Não o queria abandonar. Queria salvá-lo daquela felicidade anti-sorrisos, das gargalhadas selectivamente posicionadas, das palavras cuidadosamente balançadas no ponto perfeito de formalidade.

Mas se calhar não posso.

(E lá me diluí na tinta seca e escorri com a chuva pela cal do prédio)

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