segunda-feira, janeiro 15

O Demónio 2/3

Passado poucos meses, o pequeno ser já conseguia ler frases inteiras. Apesar das suas minúsculas cordas vocais não conseguirem, nem um bocadinho, imitar a voz cristalina dos macacos, Ninguém em breve descobriu que, relaxando os lábios e encostando as duas línguas aos dois caninos superiores, conseguia grunhir alguns sons silabantes e roucos, que é como fala até hoje. Depois de conhecer todos os gigantescos cantos da estação, Ninguém passou a divertir-se observando os macacos sem pêlo nos seus aborrecidícimos movimentos.

Nesta altura, a criatura já tinha mais que um palmo e meio, e já nem sequer cabia entre as Grandes Caixas Vermelhas (que é como quem diz, as máquinas de chocolates). E já sabia, com grande precisão, as horas em que os Grandes Monstros de Metal passavam, engolindo as pessoas que, na sua opinião, eram todas macacos muito parecidos cobertos por túnicas de adoração (sobre as quais tinha lido num folheto muito colorido). Mas caros amigos, não tenham dúvidas: o cérebro também não se julga pelo tamanho. Ele conhecia de cor e salteado todos os detalhes do mundo, o lugar onde nasciam os macacos (onde tinha tido um desagradável acidente, entre roldanas e pisadelas), e os tons que a luz fazia no chão à medida que o dia passava.

Apesar do que se possa pensar, Ninguém sentia-se sozinho. Mas era uma solidão irremediável, principalmente agora que já sabia quem era. Ele era Deus. Tinha chegado a essa óbvia conclusão, ao ler a "Bihbligrah", em que muito inteligentemente os macacos tinham descrito a sua situação: estava em todo o lado, ninguém o via, e era todo-poderoso. Ele nem se preocupava que não tivesse nome, se se chamava o que se escrevia "Alá" ou "Jeová", ou o que quer que fosse. Para ele, Deus chegava, e estava muito bem. Assim, o Deus lamentava todos os dias que aqueles seres patéticos não tivessem a benção da sua visão. Ele bem poisava sobre os seus olhos de vidro, nas varandas dos cobertores das cabeça... mas nada. Eles simplesmente ignoravam-no. Na verdade, como Deus suspeitava e veio mais tarde a confirmar, os macacos ignoravam-se mesmo uns aos outros. Mesmo agrupados, mantinham os olhos no chão, como se meditassem sobre o seu destino cruel; ou então gritavam e faziam tanto barulho que os tímpanos encarnados de Deus inchavam, e os olhos dilatavam.

Foi numa dessas noites, quando ninguém estava na estação e Deus se encontrava longamente aborrecido, que viu vir, em vez de um comboio, um grupo de macacos sem pelo. Vinham muito silenciosos, mas Deus via o calor dos seus corpos. Aquilo era completamente fora do normal, e como se imagina, Deus era extremamente curioso quando tinha oportunidade para isso. Saltou para o capuz de um deles e deslizou até ao ombro, apoiando o seu ombro cinzento e escamoso na orelha. Tudo aconteceu muito depressa: os macacos pegaram em alguns recipientes prateados e começaram a colorir tudo: os bancos prateados, o chão cinzento, as pastilhas de morango. Deus irritou-se com aquela insolência, ergueu os braços e gritou, grunhiu, rugiu, falou, ordenou! E quando abriu os olhos, pegajosos de suor e raiva, viu que à sua volta, a fúria tinha arrancado os olhos dos macacos, empurravam-se: pareciam maiores, mais fortes na sua revolta. Mas não: não era com ele, mesmo assim, não o tinham visto! Discutiam, uns com os outros, até que a violência empurrou-lhes os punhos uns contra os outros, e na confusão, lá desapareceram de novo entre o Grande Buraco.

E pintado no chão, sobre as beatas e as pastilhas esmagadas, brilhou um desenho. Deus arregalou os olhos e sorriu maliciosamente. Era ele.

1 comentário:

SuntoryTime disse...

Continua genial! *