terça-feira, outubro 19

Mãe

Porque é que és humana? Porquê que não és perfeita?Porquê que não me ouves sem lágrimas de preocupação a romperem-te o coração? Porque não impedes essas larvas alastrarem pelos teus olhos e sugarem-te os sorrisos da tua juventude? Onde escondeste as paixões, os diários, os desenhos da tua infância? Quanto tempo levou a revolução lenta e maldita que te transformou nesse ser que vela por nós dia e noite, quando a paz já não te alcança nos corredores da vida, pois rebatemos a tua mente de dúvidas que não compreendes? Disse-te no vão da escada os problemas que me invadem no caminho que ainda tenho para subir. Porque mãe, feita valente, transformaste as minhas palavras em ameaças à nossa existência? Porque não confias que eu já e ainda sei a diferença entre o bem e o mal, mas vejo o mais ou menos? Porque não aceitas que a minha vida não é repleta de certezas mas de dúvidas, e preciso que me guies cega pelas ondas da tempestade que avisto acima? Tenho planos, sonhos, ilusões... onde vão os teus? Fugiram de ti ou espulsaste-os no teu cinismo, realismo, objectividade bruta? Mãe... porque ouves as minhas palavras e as buscas no seu conceito e não no sentido que o meu espírito deu? Achas que vou escavar a minha sepultura e arder em infernos que vês, estupfacta, arder à tua frente? Tu és mais uma espectadora da vida. Lutaste por objectos de sobrevivência, destinada a não ter mais desejos, nem desperdícios, só uma limpeza obcessiva de tudo, não és mulher, és indivíduo. És aquela que ninguém vê, e ninguém sente. Trabalhas para que possamos ter as nossas vidas e perdeste a tua! Não ambicionas mais do que o nada: queres que viva, que possua, que tenha, que morra. Não é objectivo viver para morrer. O objectivo é aprender. É aproveitar enquanto ainda saboreia o ar sem sabor. Não quero assistir, somente, mãe, na vida que corre atrás do tempo que já me levou anos que não voltarão. Quero sofrer mãe, quero sofrer. Deixa-me viver as maiores provações, para que viva e não me mantenha a margem do precepício sem sentir o vento no meu corpo nú. Atiro pedras à tua redoma de vidro, mas contróis um abrigo de aço. Quero ver quem é capaz de sobreviver ao mundo. Mas quero também ajudá-los na sobrevivência, quero amar a vida, arriscar, mãe, quero deixar de não me importar com os problemas de toda a gente pelo medo de se alastrarem a mim. Tenho opinião, vida, mãos capaz de agir. Não me vou afastar da vida.Mãe o mundo não me sorri. Mas também não a ti. É velho, teimoso e sisudo como acabamos todos... porquê procurar agradá-lo? Mãe: és humana, e tens falhas, e és consequencia como eu, mas de luzes diferentes. És aquela que eu adoro mas não és divina, e não me entendes. Não procures por favor perceber-me, os meus quereres, os meus lamentos: procura apenas a essencia dos tufões que lanço á escuridão. A cada instante morro e renasço outra pessoa contraditória. Podes amar-me só pelo que mantenho em mim ou pelo nada que se mantém igual. Mas como mãe que és, amas-me pela ilusão que guardas de mim, pelo que fui ao brotar do teu ventre, e não pelo que me torno entre o subir e descer, entre o inverno e cada verão, na distância do inferno e do céu.

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