domingo, agosto 20

Colapso 1

O contraste ácido do frio húmido das marés com o quente abafado da casa pintalgava-lhe as maçãs do rosto, e a ponta do nariz, de um rosado pálido. Mas era quase imperceptível na sua pele queimada por anos e anos de sol, nas suas rugas vincadas de dores sem lágrimas. O cheiro intenso da maresia penetrava em si como hum hábito cruel - mas ele sabia bem como os anos naquele lugar tinham devorado os seus gestos imperativos e o transformavam, ainda, numa massa azeda e endurecida, queimada; esquecida no meio da multidão que todos os dias afluia ao cais.
Fitava o mar, mas já nem o via. Adivinhava-o na escuridão a cada onda, que se desmanchava no areal. A lua nova cobria toda a praia de um breu palpável. Tirou o cigarro do bolso e acendeu-o mecânicamente. O fumo elevava-se às estrelas em espirais livres. Conseguia ouvir, vindo de casa, os gritos da mulher impaciente contra as vigorosas brincadeiras dos filhos. Ora os chamava, ora elogiava, ameaçava - mas eles já sabiam como a sua mão era leve e o seu coração se contorcia por algumas gotas de carinho; e manipulavam-na. O pescador desceu as escadas, escondendo-se nas sombras vagas do passeio. Já não tinha forças para lutar contra os filhos, contra a mulher - o destino, a vontade de Deus (como lhe dizia o padre no fim da missa). Enquanto caminhava, atraído pelo cheiro salgado que o invadia, lembrou-se das suas corridas por aquele areal, com os amigos, perseguindo os cães e as meninas das vivendas. Mas no fim do dia, daqueles dias de verão, o pai recolhia-o no seu apartamento e passavam a noite a contar histórias encantadas, a elaborar teorias, fábulas, realidades paralelas. Contruíam carrinhos com caricas e pauzinhos de gelados; rebolavam a rir, e no fim da noite, embalados por um jazz sedoso adormeciam nos colchões dispostos na sala.
O pescador só sabia que muito tempo passara. As lembranças acumulavam-se assim, desordenadamente, e visitavam-no coléricamente naquelas noites sádicas. Quando os pés sentiram a areia molhada a atravessar os chinelos, recordou-se de Vanessa.
Naqueles tempos, já não corria atrás das meninas das vivendas. Estudava-as com curiosidade e paixão enquanto deslizavam as saias coloridas pelas pernas nuas e se deitavam ao sol, com as peles brancas ardendo. Uma vez ou outra aventurou-se a ir ter com elas, com conversas mansas, e com muita sorte trocavam uns beijos leves entre risinhos histéricos. As meninas mais "modernas" puxavam-no pela mão até ao beco, atrás do bar, e aí os sentidos eram mistos, e o prazer inocente dava lugar ao perfume irresistível da paixão.
Foi no final da tarde de uma dessas tardes, depois de se despedir das meninas. Ela saía da água, com o seu corpo esguio de ninfa quase-mulher, e os seios arrebitados de frio. O cabelo negro comprido caía em espirais pelos ombros e realçava-lhe o bikini vermelho-vivo. Caminhava tão suavemente que podia jurar que não deixava rasto da sua passagem, e que o sol se punha para ela: só para a poder iluminar assim.

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